terça-feira, 22 de novembro de 2016

Canção da velha gata preta


Por mim, se me inclinar para a bela Felina, assim tão bem chamada, que é, ao mesmo tempo a honra de seu sexo, o orgulho do meu coração e o perfume do meu espírito, quer seja noite, quer seja dia, em plena luz ou na sombra opaca, no fundo de seus olhos adoráveis, vejo sempre a hora distintamente, sempre a mesma, uma hora vasta, solene, grande como o espaço, sem divisões, nem de minutos, nem de segundos — uma hora imóvel que não é marcada no mostrador dos relógios e, entretanto, leve como um suspiro, rápida como uma olhadela.

                                                    Charles Baudelaire - O relógio

                                           Para minha gata Aninha

Sou forte, sou bonita
Negra pitonisa,
Maga, felina, a trajar:
Elegância no andar.
Bastet é minha Deusa,
Não temo surpresas!

Com quatro patas errantes,
Olhar efusivo e pujante, 
Por todas as noites andei;
Guerras humanas testemunhei,
Indiferente a lar e abrigo,
Eolo é meu grande amigo.

Já senti o cru castigo,
Da enfermidade e da vileza
Até das águias fui presa
Mas Bastet é minha deusa
Enfrento o golpe imigo
Com bravura e firmeza!

Inglesa, birmanesa ou persa
Sou de todos os lugares
E todos os lugares sou eu
Em todas as minhas campanhas
Tornei humanos meus fariseus
Com plácido ronronado, sou esperta!

De ninhada sem pai, cresci
Meus irmãozinhos perdi
Meu canto é forte, ouvi!
Nas alturas teço caminhos
Na mata ou na cidade, me embrenho
Terras conquisto, nunca sou forasteira!

Me faço de filha, quando um teto
Mui quero; sete vidas sopram
Mas a noite nunca é sombria
Dispenso a sorte, sou meu amuleto
Aprecio as mãos que embalam
Quando o sol abate a romaria. 

Nos dias de treva pura
Era clamada de bruxa
Quem me acompanhasse
Era entregue à flama:
Culpada de magia e fama
Teve quem me expulsasse!

Gata preta, borralheira jamais
Rainha de Sabá ou Cleópatra
As marcas de minhas patas,
Deixei em tudo e quero mais!
Gata preta, longe de todo azar
Conquistei as terras e o mar!

Mas pensar em tanta glória cansa!
Queria é mesmo aconchego
Onde possa, sem desconfiança
Encher a barriga e lamber o pelo
Até dormecer, em sonho embalada  
E esquecer a saudade de ser endeusada!

Bruno Borin

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