sábado, 2 de novembro de 2013

Para além da via férrea


Quantas tardes, cabem numa tarde?
Sem despertar o tenso alarde
Nas árvores que, pousadas nos pássaros
Abrigam a cidade em seus verdes escassos.

Coberta de nuvens e de fumaças carbônicas
A vida qualquer segue, trilhos adentro
Paralelas aos ventos soprando densos
Feito pianos dolentes e pirrônicos.

Nem onomatopeias mais carregam
As locomotivas, só a vida sofrida
Da cidade em seta de única ida,
Enquanto as corporações prosperam,

As rotinas condenam, aventuras lícitas
E o chilreio do lucro, sorri
Enquanto eu mil vezes morri
Diante dos trilhos que principiam solícitos.

A minha aventura, que existia sem mim
Partilhada pela teoria do macio capim, 
Efêmero e longínquo, campo sem fim
Hoje substituído pela trilha férrea

Muitos são os dias que cabem num dia
As tramas dos bichos urbanos, assim eu lia
Em seus silêncios vertiginosos 
E sombras, deduzivelmente telepáticas.

Com a morte misturada na garganta
As pétalas florescentes surgem 
E ignoradamente, fulgem
Sua pequena cosmologia de planta,

E um urubu, esgarçando-se nas nuvens
Não contrasta em nada com o mercedes-benz
Do executivo que negocia o espólio da morte
Do capitalista, que não teve da vez a sorte.

O que falar então das noites poucas
Para tantas horas de sono esquecidas
Enquanto nossos morcegos barganham
As vozes que preferimos tanto moucas,

Que a natureza fecha os olhos coloridos
E as neuroses se tornam nossos alaridos 
Tão perpétuos quanto seus bichos guardados
E seus córregos imobilizados.

Escorrendo de nossos vulgares dedos
Como se o tempo se misturasse ao medo
E ao cisco que invade o olho ardido
Dos que têm suas retinas vendidas

Ao processo de amanhecer amontoado
Nos trens que percorrem sem metafísica
Apenas o suor acumulado
Durante toda a vida tísica 

Da metrópole, onde a vida jorra
Arquitetura auditiva 
Eternamente remoldurada
Sem jamais pensar, na Via-Láctea
Essência latente da mentira humana.

By: Bruno

Um comentário:

  1. Muito querido poeta Bruno,
    Boa manhã na segunda.
    O seu poema, e isso é incrível, é premunitório da ocorrência recente com sua familiar próxima.
    Mas, em especial, seu poema "Para além da via férrea" é provocante. É uma viagem no tempo e na emoção em ritmo de trem antigo.
    Tenho para mim que o seu poema é mais de um.
    Reconheço melhor, e gosto mais também, do Primeiro Poema que vai de "Quantas tardes..." até "corporações prosperam".
    Nesse Primeiro Poema encontro a narrativa completa, bem narrada.
    O Primeiro Poema é palpável, eu o prefiro.
    De "prosperam" em diante o Poema toma o caminho da reflexão intimista.
    Daí eu me perco um tanto. É como se o autor entrasse dentro do seu universo intra muros e deixasse eu leitora no limiar.
    Também nesse Segundo Poema o uso de palavras inusuais se acentua. Não me agrada o virtuosismo, este é como uma barreira à inclusão da leitora.
    Fico, portanto, com o Primeiro Poema e nele: (1) suprimo escassos-carbônicos-pirrônicos-mais; (2) substituo dolentes por dormentes; (3) troco o verso "enquanto as corporações prosperam" por "onde a matéria é corpo urbano".
    São essas as minhas xeretices de leitora que admira o poeta.
    Abraços e parabéns,
    Cibele

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